Arqueologia das Ruínas

Arqueologia das Ruínas

ARQUEOLOGIA DA BAIXADA SANTISTA

De acordo com o quadro geral da Arqueologia Brasileira, são admitidos dois macro-sistemas pré-coloniais genéricos para a região da Baixada Santista, onde se insere o Engenho São Jorge dos Erasmos: pescadores-coletores e agricultores indígenas. Como exemplo, no primeiro caso, destaca-se o Sistema Regional de Sambaquis que localmente gerou cenários adaptados às influências peculiares do meio ambiente da baixada. No segundo caso, os tupinambás também chegaram a produzir recortes paisagísticos com alguma identidade fronteiriça relacionada com os sistemas regionais Guarani e Kaingang (ambos com áreas nucleares no interior, em terras do Planalto Meridional).
No período pós-conquista ibérica, as frentes pioneiras da sociedade nacional geraram sistemas e cenários específicos, ditados por ordens econômicas e sociais específicas, inauguradas com a conquista portuguesa na América indígena. Neste caso, a Baixada Santista assume posição ímpar pelo fato de ter sediado o primeiro assentamento efetivo do sistema colonial português.

O ENGENHO SÃO JORGE DOS ERASMOS

Próximo ao canal do rio São Jorge, no Morro da Caneleira, em Santos, estão as ruínas do Engenho São Jorge dos Erasmos. Restos desta vetusta construção ainda resistem ao tempo: algumas paredes de alvenaria em pedra e cal, muros de contenção e alicerces. Apesar da sua atual situação, passados mais de quatro séculos, as ruínas ainda oferecem generoso campo de estudo.
O conjunto arquitetônico dos Erasmos está entre as nossas mais antigas construções, remontando aos primeiros anos da colonização efetiva destas terras pelos portugueses e correspondendo à introdução da manufatura do açúcar no Brasil. A organização de toda a logística produtiva – em torno de um produto de grande inserção nos mercados consumidores da Europa – foi uma estratégia que garantiu a posse das novas terras para a constituição da própria colônia, pois exigiu o estabelecimento de uma população permanente de colonos, vivendo em vilas fundadas sob as determinações régias, usufruindo um território dividido em grandes latifúndios, cultivados pelas mãos de índio e negros escravizados. Trata-se, portanto, de um importante testemunho do período da própria instalação da colônia. Seu estudo contribui para a melhor compreensão dos diversos aspectos envolvidos no início da colonização do Brasil, entre eles – talvez o de maior alcance até os nossos dias – o esforço de um povo em conquistar terras distantes, mobilizando duramente outros povos, pelo trabalho que aqui engendrou a formação do povo brasileiro. Este é um marco relevante para o conhecimento da sociedade colonial brasileira, integrando-se aos demais registros arquitetônicos da Região Metropolitana da Baixada Santista. Por meio destes vestígios estão documentados em Santos e nas demais cidades da Baixada, momentos significativos na construção da cultura brasileira. As Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos estão em terreno de propriedade da Universidade de São Paulo desde finais da década de 1950 e têm sido objeto de intervenções de natureza variada visando a sua preservação e o seu conhecimento.
Erguido à semelhança dos engenhos existentes na ilha dos Açores, dada a aglutinação de áreas residenciais e de trabalho num único edifício, supõe-se ter sido um estabelecimento de porte médio. A localização, junto a um riacho, permitiu que fosse movido a energia hidráulica, com roda d’água de eixo horizontal. Escavações arqueológicas desenterraram o que se conjectura ter sido a mó de pedra, roda com um metro de diâmetro que fazia girar os eixos com os quais se esmagava a cana para obter o caldo. Também foram encontradas fôrmas de pães de açúcar, que recebiam o caldo de cana fervido e o armazenavam por cerca de 45 dias, após os quais o pão – bloco de açúcar endurecido – era retirado. A camada superior e mais clara era a parte nobre, que se destinava à exportação. Na inferior, ficavam depositados o bagaço da cana e as impurezas, o produto mascavo e mais escuro. O Engenho São Jorge dos Erasmos foi construído sobre uma plataforma de terreno, ampliada pela construção de muros de arrimo, em posição de domínio sobre a paisagem à frente e protegida dos ataques dos índios pelo Morro da Nova Cintra, na retaguarda. Abaixo, um curso d’água facilitava o transporte da cana e do açúcar por canoas. Erguido, provavelmente, em 1534, foi uma das primeiras agroindústrias de ‘ouro branco’ do Brasil e a primeira sociedade anônima do País, da qual participava Martim Afonso de Souza. Em 1540, o banqueiro holandês Erasmos Schetz adquiriu a propriedade, incendiada no século XVII pelo pirata holandês Joris Spielbergen. Paralisando as atividades no século XVIII, a área foi loteada em 1943, sendo o engenho doado para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – hoje Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em 1958 e tombado em 1963. 
A edificação de 3.200 m², em área com mais de 48 mil m², concentra paredes constituídas por blocos de rochas graníticas e uma argamassa que provavelmente concentrava areia e cal de conchas.

PROJETOS PIONEIROS

Em maio de 1995, a USP e a Prefeitura Municipal de Santos assinaram Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta visando à escavação, a realização do projeto de revitalização cultural e a preservação do Engenho. De acordo com a Arqueóloga Margarida Davina Andreatta, em julho de 1996 iniciou-se a escavação arqueológica na área da ruína, a qual foi concluída em 10 de dezembro do mesmo ano. O trabalho de laboratório realizado in loco foi executado concomitantemente ao inventário de peças arqueológicas coletadas nas pesquisas de campo. Os trabalhos se desenvolveram em etapas, como se seguem:

DOCUMENTAÇÃO: levantamento documental para compreensão do processo de desenvolvimento e implantação do Erasmos, as diferentes etapas evolutivas da fabricação do açúcar, a ocupação dos espaços de trabalho e as demais atividades correlatas no Brasil entre os séculos XVI e XIX.

PESQUISA DE CAMPO: com a escavação obtiveram-se amostras e testemunhos que permitiram a avaliação do potencial arqueológico para posterior escavação mais detalhada e sistemática na área. A utilização de métodos e técnicas da arqueologia pré-histórica, associados aos da arqueologia histórica industrial, permitiu a leitura da estratigrafia inscrita no próprio patrimônio industrial sedimentado na paisagem e o resgate dos espaços que se referem a qualquer atividade humana como a habitação, a fábrica de açúcar, a capela, a senzala.

ESCAVAÇÃO: O confronto das fontes documentais com os vestígios materiais poderá fornecer dados de embasamento para que diversos projetos possam ser elaborados. Com relação, ao trabalho de campo, escavações delimitaram a área de interesse arqueológica e evidenciou os vestígios materiais e fragmentos cerâmicos, restos de louça, faiança, vidro e metal. A USP e a Universidade Católica de Santos firmaram convênio acadêmico visando a implementação de ações conjuntas ligadas à pesquisa, proteção e valorização do Engenho, estando aberta para a celebração de novos convênios.

Continuando a pesquisa arqueológica, José Luiz de Morais, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e sua equipe interinstitucional, com a participação da UNISANTOS, propôs e executou, entre 2002 e 2003, o projeto “O Engenho São Jorge dos Erasmos na Perspectiva Arqueológica e Ambiental da Baixada Santista”, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. A partir deste trabalho foram identificados os principais traços introduzidos pela colonização europeia na paisagem da Baixada Santista, especialmente os sistemas de uso e ocupação do solo e seus efeitos no meio ambiente regional, reconhecendo e analisando as mudanças de padrões de assentamento decorrentes da imposição da nova ordem econômica e social.

O CEMITÉRIO

A redescoberta do cemitério do Engenho foi possível a partir das informações iniciais veiculadas pelo Sr. Jayme Caldas, pesquisador local da história de Santos. Em 1957, ele fora o responsável por supervisionar a abertura de uma trincheira que resultou na descoberta de alguns crânios, imediatamente devolvidos ao local. As escavações do biênio 2002-2003 convergiram para o estabelecimento da arqueografia do cemitério, cujo achado significou um passo importante para o programa de arqueologia das ruínas: as datações obtidas por carbono 14 revelaram datações que se iniciam em meados do século XVI, confirmando a antiguidade do engenho e suas origens nos primórdios da colonização portuguesa.

Os resultados preliminares da pesquisa no cemitério proporcionaram:

1) a localização, identificação e evidenciação de dezenove indivíduos — dezoito adultos e uma criança — além de catorze ocorrências de conjuntos de ossos e ossos esparsos, em uma área de 15 m²;

2) a identificação preliminar da etnia dos indivíduos – índios ou mestiços – em função da presença de incisivos em forma de pá que, pela frequência em que ocorreram, sugerem características de populações de origem asiática;

3) a presença de pelo menos um individuo negro, pelas características morfológicas do crânio;

4) a presença de dois padrões de enterramento: primário, simples, com a face voltada para norte/nordeste, e secundário, múltiplo, sem arranjo aparente;

5) a hipótese inicial relativa à idade do cemitério, eventualmente iniciado no século XVI (a datação radiocarbônica obtida posteriormente confirmou a hipótese); e

6) a provável utilização do cemitério em duas épocas: primeira, por ocasião dos enterramentos dos índios e mestiços, e a segunda, marcada pela presença de negros.

Recentemente, dois trabalhos têm colaborado para o alargamento dos conhecimentos sobre a arqueologia do Engenho: o projeto Pesquisa arqueológica para o Monumento Nacional Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos, coordenado pela Profª Drª Maria Cristina Mineiro Scatamacchia, e a dissertação de mestrado de Victor Lordani, intitulada Engenho São Jorge dos Erasmos: aproximações acerca da morte e da vida no complexo açucareiro vicentino (séculos XVI- XVII) que trouxeram importantes discussões sobre o planejamento de intervenções arqueológicas na superfície das estruturas evidenciadas, bem como no estudo dos enterramentos e a utilização do cemitério na dinâmica de ocupação na região.

Para aprofundar seus conhecimentos, conheça os relatórios das escavações realizadas no engenho disponíveis para consulta na Biblioteca da Base Avançada de Cultura e Extensão.



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